Apenas Elisa


   – A senhora não se importa de assinar aqui e ali, se faz favor... – disse eu, desenhando a lápis uma cruz onde ela deveria assinar.
   – Elisa, trata-me apenas por Elisa... – disse ela num tom quase imperativo, mas tão sereno como a doçura da sua voz.
   – Como? – perguntei, para me certificar que ouvira bem.
   – Apenas Elisa, trata-me apenas por Elisa. – disse sorrindo, olhando para mim. Senti uma inesperada vontade de ficar assim para sempre. Parar aquele momento… aquele não conseguir parar de a olhar.
   E esta espécie de feitiço termina, esta sensação de ser controlado. Ela baixa o olhar, para os papéis, e eu sinto que ela, a cliente, me chama a atenção para que é meu dever concentrar-me no meu trabalho.
   – Aqui e ali, se faz favor... Elisa... – repeti, fazendo o meu trabalho, acatando o desejo da cliente.


   Sempre que ela passava para lá das amplas janelas que eram fachada do meu local de trabalho, um qualquer colega dizia: lá vai ela... E então era vê-la passar sempre com a mesma leveza no andar, parecendo não pousar no chão, parecendo sim flutuar. Vestia sempre sob o mote da simplicidade mas sem nunca deixar uma elegância sublime. Parecia uma brisa, e nessa tão própria brisa voavam, em total harmonia, os seus cabelos loiros, leves, soltos e brilhantes.
   Aquele bairro era quase uma localidade de província na cidade. As pessoas conheciam-se quase todas umas às outras, saudavam-se na rua. Bisbilhotava-se no pequeno supermercado a vida alheia ou na mercearia da província... Ela era a notícia do dia, dos últimos dias, de há uma semana a esta parte, talvez...
   Mas digamos que tudo começara ainda antes de ela chegar e se instalar no bairro.
   Havia um café no final da rua, muito agradável, onde toda a gente se falava e saudava como se de uma imensa família se tratasse, onde os clientes quase não precisavam dizer o que queriam, pois os empregados já sabiam de cor os hábitos e gostos das gentes locais.
   Mas um dia, inesperadamente, sem nada até então o fazer prever, chegou a notícia que iria fechar... Nunca ninguém se apercebera da possibilidade desse cenário, nem nós no Banco, qual confessionário não declarado da situação económica de cada um lá do bairro, o imaginara... mas o certo é que fechou e de imediato lá apareceu o anúncio que informava que o estabelecimento se trespassava, alugava ou vendia. Mas sabíamos que se privilegiava a venda em detrimento das outras duas opções.
   Correu a notícia não confirmada que o filho do dono se havia endividado, levando o pai a vender aquele bem da família para lhe pagar as dividas e assim limpar o seu nome. Nada confirmado, mas o povo, achando-se soberano, tomou esse cenário como verdade absoluta.
   Bem, mas se inesperado foi o fecho, mais surpreendente foi saber-se da venda uma ou duas semanas depois de ter sido colocado o anúncio. Por dois motivos era justificada essa surpresa. Primeiro, a péssima situação económica do país e a crise no mercado imobiliário. Segundo, sabia-se que não era um negócio para se ficar rico. Exigia muito trabalho, dedicação e o retorno nem sempre era equiparado.
   Primeiro os vidros foram forrados com papel de jornal e viu-se sair de lá todo o equipamento necessário para o funcionamento daquele estabelecimento tal como sempre o havíamos conhecido. Não muito depois esses vidros foram substituídos por outros, daqueles espelhados, que durante o dia não permite ver o que se passa no interior.
   Uns dias depois ela apareceu... e sendo o bairro a dita localidade de província na cidade, naturalmente ela passou a ser notícia e a curiosidade instalou-se entre todos. Quem era? O que estava a ser feito naquele espaço? Naturalmente ela não conhecia ali ninguém, logo ninguém sabia quem era nem quais os seus planos. Toda a gente andava sedenta de novidades.
   Depois soube-se que comprara um apartamento ali perto. Sim, comprara, não alugara, logo se podia concluir que vinha para ficar. Dizia-se que havia pago a pronto.
   Um dia ela olhou pela ampla janela, no outro talvez o letreiro e ao terceiro dia, qual aparição, ela entrou... assim que o fez eu não consegui parar de a olhar, não havia ligado muito às notícias sobre a nova cidadã do bairro, eu vinha de outras paragens, apenas ali vinha religiosamente todos os dias da semana para trabalhar na única agência bancária que ali havia, mas naquele instante percebi porque homens e mulheres não paravam de falar nela. Por eles certamente desejada. Por elas naturalmente invejada.
   Talvez ela se tenha apercebido do meu olhar, talvez sem o querer eu a tenha chamado ou, por mero acaso, eu não tinha cliente naquele instante e ela a mim se dirigiu.
   Naquele momento em que ela parou bem na minha frente, em que sei ter sido invejado por todos os meus colegas, fiquei sem palavras. Sem lembrar as palavras da mera boa educação, da mera rotina laboral, rotina essa de já vários anos naquela função... E então ela disse:
   – Bom dia, meu nome é Elisa... – disse, enquanto no seu rosto havia um sorriso natural, e estendeu-me a mão.
   Levantei-me da minha cadeira e aceitei aquele cumprimento.
   – Sente-se... – disse tentando não parecer nervoso e concentrando-me nas rotinas da função.
   – Obrigado! Com licença... – disse ela educadamente.
   Sentou-se, ajeitou o cabelo que com o sentar havia saído do arranjo que ela queria para ele.
   – Em que lhe posso ser útil? – perguntei depois de me certificar que ela estava devidamente instalada.
   – Gostaria de abrir uma conta no seu Banco... – começou por dizer e ao mesmo tempo começou a procurar algo na bolsa que trazia consigo.
   A minha concentração naquele instante, para que nada saísse errado, era tanta que pensei até na possibilidade de um assalto, mas era um perfeito disparate.
   Ela demorava e enquanto procurava, disse-lhe que documentos precisava e o montante mínimo para abertura de conta.
   – Encontrei! – exclamou ela finalmente.
   Sorri perante o alívio por ela demonstrado.
   – Já vi que isto chega para abrir uma conta no seu Banco. – disse ela sorrindo, dando-me um cheque.
   Bem, o cheque era de um montante apreciável. Mais do que eu iria ganhar por ali trabalhar no que restava de um ano que mal havia começado.
   – Óbvio que sim... – foi tudo o que consegui dizer.
   Tirei de uma gaveta os formulários de abertura de conta e ela facultou-me os documentos que anteriormente lhe disse que precisava.
   Esta foi a primeira de muitas outras vezes que ela haveria de voltar.
   Numa dessas vezes, ela faz questão que eu a passasse a tratar apenas por Elisa, o que naturalmente fiz a partir de então.
   Sempre que eu que não estava no Banco e por acaso Elisa aparecia, perguntava logo por mim, alguém lhe respondia quando eu estaria de volta e ela voltava mais tarde. Até hoje só eu a atendi. Os meus colegas, com alguma inveja, dizem que ela está interessada em mim e que finalmente alguém me vai desencalhar. Confesso não gostar muito de tais comentários, mas a verdade é apenas uma: ela tem o capricho, penso que lhe posso chamar assim, de ser atendida apenas por mim. Apenas isso. Nada mais quero acreditar que seja.

   Chegou também aos meus ouvidos que ela tocava piano, ou que, pelo menos, era apreciadora da música deste instrumento. Um dia, já em casa, por mera curiosidade fiz no youtube uma pesquisa juntando duas palavras: piano elisa... Não esperava encontrar nada, mas acabei por achar um tema do compositor alemão Ludwig van Beethoven, justamente chamado Para Elisa, e pensei que também na vida deste houve a dada altura uma Elisa. Voltei a fazer mais uma pesquisa e afinal crê-se que a Elisa de Beethoven era na realidade Therese Malfatti, também conotada como sua musa.
   Bem, a minha cliente Elisa não era musa. Mas era impossível ficar-lhe indiferente. Era impossível. Eu desejava a sua vinda.
   Todas as manhãs durante quase um mês notava-se grande azáfama naquele antigo café, mas sendo tudo feito pelas traseiras, o estabelecimento tinha ainda uma cave também, era impossível saber ao certo o que se estava ali a fazer. Quem lá se via a trabalhar era de poucas falas e eram à semelhança de Elisa desconhecidos das pessoas do bairro.
   Apesar do secretismo, Elisa, com a sua postura, ganhara o respeito das pessoas. Sendo vistosa, não era pela sua postura, de dar nas vistas, era discreta. Quem já havia convivido com ela, dizia que era de uma simpatia extrema, de uma educação intocável. Naturalmente eu concordava, tendo em conta a minha interação com ela. A sua postura, próxima nuns aspetos, distante noutros, fazia as pessoas não lhe fazerem muitas perguntas. Elisa parecia querer integrar-se sem se expor em demasia. E verdade seja dita, estava a consegui-lo.
   Há realidades que são como uma forte corrente, por mais que se tente, lute, para não ir nelas, lá vamos... Deixava sempre meu carro no mesmo parque, quase sempre o mesmo lugar, somos feitos de hábitos e rotinas, e passar pelo antigo café era inevitável para chegar ao meu local de trabalho. Portanto olhar, tentar descortinar, o que se passava para lá daqueles vidros era quase instinto. Mas nunca nada consegui ver, apenas se escutava um ou outro som próprio de uma lugar em obras ou remodelação.
   Um dia, quase dois meses após o fechar inesperado do café, Elisa veio ao Banco.
   Havia alguém comigo, havia colegas livres, disponíveis, para a atender, mas ninguém a interpelou no sentido de lhe dizer o que quer seja, pois sabiam que ela fazia questão de ser por mim atendida. Elisa esperou a sua vez.
   Após a atender e quando já me preparava para despedir dela:
   – Está quase... – disse ela com um sorriso, em voz baixa, como se me estivesse a contar um segredo, e no fundo era, ela tinha noção disso de certeza.
   – Como? – perguntei sem perceber o contexto.
   – Está quase... – repetiu ela no mesmo tom e piscando-me o olho.
   Ela levantou-se, sem deixar aquele sorriso cúmplice, despediu-se de mim com o habitual aperto de mão e foi embora.
   Dois dias depois, pouco antes da minha hora de sair do Banco, toca o telefone. Desejei não ser um daqueles inoportunos imbróglios de última hora, não tinha nada de urgente para fazer quando saísse, mas queria sair a horas.
   Era Elisa. Estranhei, nunca ela havia ligado.
   – Algum problema? – perguntei preocupado.
   – Problemas terá você se não aceitar o convite que lhe tenho para fazer... – disse ela num tom tão ameaçador quanto mal encenada era a ameaça, não disfarçado a sua habitual simpatia e boa disposição.
   – E qual é o convite? Não quero ter problemas. – disse entrando naquele jogo de faz de conta.
   – Quando sair venha ter comigo... – começou ela por dizer.
   – Isso parece mais uma ordem que um convite. – interrompi.
   – É isso mesmo: uma ordem... – concordou ela – A porta estará apenas ao trinco, entre o mais discretamente possível. – finalizou ela.
   – Com certeza, assim será... – aceitei.
   – Ah! Gosta de vinho? – perguntou.
   – Sim, gosto, alentejano tinto... – disse espontaneamente.
   – Estou à sua espera. – finalizou ela.
   E desligou o telefone.
   Fiquei nervoso, confesso, verifiquei se alguém havia escutado aquela conversa, mas felizmente, e aparentemente, não.
   Passada meia hora sai e ao passar pelo café...
   Paro. Acabo de parar, não há gente a passar, vou abrir a porta e entrar...


   Notas Finais
   Agradeço mais uma vez a Ivone Moreira a paciência que tem para corrigir o que escrevo.




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16 comentários:

  1. Oh pá.... se me é permitido este termo
    E agora? O final? é o leitor que decide?
    Isto é pura maldade... no melhor! falta de energia, corrente... a luz foi abaixo ?
    Muito bom, adorei
    Valeu ficar acordada mais um pouco e gostaria de ver um final bonito!
    Beijinho

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    1. E agora? O final?...
      Bem, não será o leitor a decidir porque Elisa não deixa :) Haverá continuação e então Elisa irá revelar-se, mas aos poucos, quando ela quiser... Ela é que decide...
      Foi uma maldade propositada, primeiramente resultou da noção que tive que o texto que estava a idealizar iria ficar muito grande, depois havia então que quebrá-lo num pouco chave para prender o leitor(a), deixá-lo(a) curioso(a). E o resultado foi então esta maldade.
      Posso dizer, tipo metáfora, que o que fiz foi tirar o aperitivo a uma pessoa que está com fome, e isso é terrível... Admito, mas vai valer a pena esperar porque no segundo texto Elisa vai arrasar por completo.
      Obrigado pela fidelidade.
      Beijinho

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    2. Assim é melhor!!!! cá fico a aguardar ;)

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    3. O próximo texto ficou hoje pronto e será publicado a 30 de Dezembro às 00:00 ;)

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  2. Muito bom, como sempre :) Adorei a faceta tão misteriosa de Elisa :) Parabéns!

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    1. E quando a Margarida ouvir as falas dela no próximo texto... Não lhe digo nem lhe conto :) Obrigado pela sua fidelidade...

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  3. :) Nada a agradecer!! É um privilégio lê-los todos em primeiríssima mão!! Beijos!

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    1. Nunca é demais sermos gratos para com quem nos ajuda :) Beijinhos

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  4. Já lia tudo até ao fim... gostei do que li ;-)

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    1. Obrigado Alexandra ;)
      Dia 30 sairá o texto que irá continuar este e a revelar mais alguma coisa sobre esta enigmática Elisa...

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  5. Esta Elisa promete! Gostei do enredo e da expectativa do que se vai passar a seguir... Abraço Vítor

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    1. Meu Tio, você nem queira saber o que aí vem ;) Ela volta a 30 de Dezembro...

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  6. Tomei conhecimento do seu Blog através da página de um amigo, e a curiosidade levou-me á leitura do seu texto, achei fantástico, como uma apaixonada pela leitura, há muito que não encontrava nada que me prendesse desta forma.Os meus sinceros parabéns. Aguardo o final.

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    1. Muito obrigado e desde já um Feliz Natal e um Próspero Ano Novo ;)
      Este meu texto tem já continuação marcada, será dia 30 de Dezembro às 00:00.
      Volte sempre...

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  7. Acabo de parar, não há gente a passar, acabo de abrir a porta e entrar...
    Estava como que a saborear um belo crepe com chocolate quente e foi-me retirado o prato...é o sentimento que tenho no momento, por ter parado de ler...não há mais texto!!
    Sublime!
    Mais uma vez volto a frisar:- Abençoado escritor, que consegue prender deste modo o leitor, no meu caso a leitora!! Parabéns!!!

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    1. Peço imensa desculpa :)
      Mas alguém roubou o crepe de chocolate pois também eu não o tenho... "Chá com Elisa" talvez esteja um pouco por lá ;)

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     O vídeo que pode ver em baixo é uma curta-metragem chamado Cupidity (ou Cupido, em português).

     A história é sobre uma empregada de mesa apaixonada por um cliente, mas que ele nunca reparou nela. Ela canta no restaurante onde trabalha e todos a aplaudem... menos o cliente por quem ela está interessada.

     Até que ela percebe o real motivo do desinteresse e recebe a ajuda de um Cupido. Veja por si mesmo: clique no play e emocione-se.