Um Chá com Elisa


   Abri a porta e ainda mal a tinha fechado, uma voz se fez ouvir:
   – Tranque a porta, se faz favor... – disse alguém lá bem do fundo.
   De quem era a voz? Não havia sombra de dúvida. Era a de Elisa.
   Fiquei absolutamente deslumbrado com o que o meu olhar podia alcançar. Aquele espaço estava irreconhecível. De imediato, apesar de mais ocupado, me pareceu maior. Quis para mim mesmo classificar o que via e assim, de repente, naquele instante, sendo espontâneo, parece-me entrar numa imensa sala de estar.
   Vi Elisa. Estava num espaço onde antes havia uma mesa de snooker. Com ela havia alguém.
   Fiquei com a impressão de conhecer aquela pessoa. Pareceu-me um rapaz, de vinte e tal anos, que havia sido colaborador do antigo proprietário daquele espaço. Mas não tive certeza absoluta.
   Ela despediu-se dele com dois beijos e este saiu, não pela porta por onde eu havia entrado, mas por certo, pela saída das traseiras. Passou-me pela cabeça que seria aquele rapaz, digamos assim, o responsável pela chegada de Elisa ao bairro.
   Mas não tive mais tempo para pensar, Elisa veio ao meu encontro. Deslumbrante mas discreta, como sempre, com o seu tão característico saber estar. Estendeu-me a mão para me cumprimentar. Ali estava na minha frente, num espaço magnífico, uma verdadeira anfitriã. Tinha que admitir… ela parecia fazer aquilo tão naturalmente, tão convincente… parecia que era a milionésima vez que recebia alguém na sua própria sala de estar.
   – Como está, Santiago? – perguntou enquanto me terminava de apertar a mão.
   Eu sorri-lhe, honrado pelo convite, pelo gosto em vê-la, mas sem conseguir proferir uma palavra que fosse.
   – Não precisa responder já, temos tempo... – disse ela safando-me a mim mesmo de todo o espanto que ainda sentia – Eu já lhe explico tudo, ou quase tudo, ou nada... – conclui ela de forma enigmática.
   – Gosto! Gosto muito, está absolutamente fantástico... – disse eu por fim.
   – Venha tomar qualquer coisa, mas, sabe, não quero dizer-lhe nem a si nem a ninguém o que para este espaço idealizei. Quero que as pessoas o interpretem e depois, se estiverem erradas, eu cá estarei para as emendar. – começou por dizer e chegados ao bar, ela foi para trás do balcão.
   – Parece-me uma boa estratégia... – disse, não porque achasse aquela forma de agir a mais normal, mas porque fazia sentido tendo em conta a Elisa que eu conhecia.
   – Bem, gosta de chá? – perguntou ela e sem me deixar responder – Eu sei que o convidei para supostamente tomar um vinho, mas verdade não é bem essa, mudou agora, você vai jantar comigo e aí haverá vinho. – decidiu ela.
   Nos meus ouvidos ecoava: você vai jantar comigo. Ela não me convidara, quase ordenara, e eu vi-me a não conseguir questionar, quanto mais recusar. Fazê-lo seria quase uma sentença de morte.
   – Adoro chá... – disse em absoluta verdade.
   – Ainda bem então. – disse ela sorrindo.
   Fomos beber chá confortavelmente instalados e para comigo pensei: é uma casa de chá, pelo menos!
   – Mas diga-me, Santiago, o que acha? – perguntou Elisa como se tivesse, não escutado o meu pensamento, mas soubesse que eu havia pensado algo sobre o que me rodeava.
   – É difícil... – disse enquanto o meu olhar olhava em toda a volta.
   Elisa parecia esperar a minha resposta com um misto da ansiedade de um veredicto, mas também com a calma, com a convicção, de que o mesmo não podia ser uma condenação.
   – Parece-me uma ampla e acolhedora sala de estar... – disse tentado ser o mais resoluto que podia ser perante tudo o que me rodeava.
   – Uma sala de estar! – exclamou ela pensativa – Parece-me uma definição minimamente aceitável, passou no teste... – finalizou ela sorrindo.
   – Mas quando pretende abrir? – perguntei curioso, mas também porque mais nada se me ofereceu dizer perante o que ela dissera.
   – Eu não o trouxe cá para me fazer perguntas, mas sempre lhe posso dizer que não depende exclusivamente de mim. O trabalho está praticamente todo feito, faltam apenas ínfimos pormenores. Podia abrir agora mesmo... – bebeu um gole de chá e continuou – Bastava você me ajudar!
   – Não é propriamente a minha área... – disse ainda surpreendido com a assertividade da argumentação de Elisa.
   Era uma mulher que mesmo ali ao lado estava longe, mantinha uma distância que induzia respeito, mas não era por isso discriminadora. Era... apenas Elisa. Era única. E eu... bem, eu, começava a... gostar.
   – Passava a ser, disponibilidade, bom modo, vontade de aprender e esta sala poderia ser também a sua e presumo que goste de receber bem. – lançou ela uma espécie de repto.
   A sensação que tive era a de um quase duelo. De um jogador profissional ou mais talentoso a derrotar um outro, amador e menos talentoso, com menos vocação competitiva talvez. No entanto:
   – Se assim tivesse que ser, seria... – aceitei de alguma forma o repto.
   Mas ela não desarmou.
   – Lamento, meu caro, mas chegou tarde, terá de ficar pelo seu Banco, pois já recrutei todos os meus colaboradores. – argumentou ela uma espécie de golpe final.
   Não tive resposta imediata e ela, como que, parecendo funcionar numa velocidade acima, como se tivesse um processador mais rápido, conclui que estaria a ser um pouco rude. Talvez.
   – Desculpe, Santiago... – disse parecendo de facto arrependida – Sabe, estou um pouco ansiosa, não compreendo como é preciso tanta burocracia para abrir um espaço como este. – conclui.
   – Não tem que pedir desculpa, eu compreendo o que está a sentir... – disse tentando reconfortá-la.
   – Prometo compensá-lo com o vinho que escolhi, sabe, nesta sala de estar haverá bons vinhos... – disse ela sorrindo.
   Bem, à hipotética casa de chá, juntava-se também bons vinhos.
   – Acho muito bem, estou de facto a sentir-me um pouco enganado... – disse em tom de brincadeira, bebendo o meu chá.
   – Não seja por isso… Deixe-me dizer-lhe que gosto imenso do seu nome. – disse ela parecendo compensar-me.
   – Gosta! – exclamei surpreendido.
   – Sim, mas não o colocava a um filho meu... – confessou com ar inesperadamente sério, parecendo ironia aquele gosto pelo meu nome.
   – Mas se gosta, porque não? – perguntei.
   – Podia dizer-lhe que gosto mais de um outro qualquer nome apesar de gostar muito do seu, mas a verdade é que sou, talvez, demasiado egoísta para ter filhos. – explicou.
   – Como assim, egoísta? – perguntei curioso.
   – Preservo muito a minha independência, a minha liberdade, receio não ter capacidade cuidar de um filho. – disse com sinceridade.
   Respirei fundo e preparei-me para, falando pausadamente, levar Elisa aceitar o que lhe iria perguntar.
   – Mas Elisa, naturalmente, sei a sua idade. Como deve compreender memorizei. Não sente aquilo a que se chama instinto maternal? – questionei sentido vontade de ser mais ativo naquele duelo, isto fruto do meu interesse crescente por aquela mulher.
   – Hum! Sabe, gosto de si, a outro qualquer eu deixaria a falar sozinho ou responderia que não tem nada ver com isso... – fez uma pausa, mais um gole de chá, e continuou – Mas você faz-me sentir mais calma, ainda me tem que explicar como faz isso, e por isso lhe respondo que não sinto nada disso, assim como nunca senti aquela patetice das borboletas na barriga...
   – Nunca se apaixonou, é isso que quer dizer? – Interrompi perguntando.
   – Santiago, Santiago... – repreendeu-me ela e eu senti que havia passado o limite dos limites – Isso é demasiado pessoal para lhe ser respondido assim na primeira vez que realmente conversamos.
   – Peço desculpa... – assumi a invasão de privacidade prematura que havia acabado de fazer.
   – Sabe, essa das borboletas é um mito, o que as pessoas sentem, e desculpe a minha frontalidade, só pode ser cólicas ou gases... – disse ela revelando um sentido de humor cáustico.
   Tive que rir.
   – Sim, faz sentido essa argumentação... – concordei.
   – Faz sentido?! – admirada colocou em causa a minha concordância – Quer dizer que nunca se apaixonou? – perguntou.
   – Não, quer dizer que nunca senti as borboletas... – esclareci.
   – Mais uma vez vai desculpar a minha linguagem, se o meu pai aqui estivesse não iria gostar, mas isso do mito das borboletas é mais coisa de gaja. – expôs ela a sua convicção.
   Mais uma vez tive que rir.
   – Santiago, você não é gay, pois não? – perguntou receosa.
   – Não, Elisa, não sou... – respondi prontamente.
   – Desculpe, estou a exagerar. – disse arrependida – Que conversa esta!...
   Bebi o último gole de chá.
   – Quer mais? – perguntou ela ao ver que tinha terminado.
   – Sim, pode ser... – aceitei.
   – Gosto de si, sabe, simpatizei consigo. – confessou.
   – Obrigado! – agradeci sentindo orgulho.
   Bebemos mais chá, falámos das idas dela ao Banco, justamente por simpatizar comigo desde o primeiro dia é que ela sempre quis ser por mim atendida. Falámos do bairro e das suas gentes, da forma como fora recebida e tempo passou a voar.
   Eram já quase 19h.
   – Gostava de lhe oferecer um jantar como deve ser, mas a verdade é que não tive tempo para tal... – confessou Elisa.
   – Não faz mal... – interrompi com uma ligeira sensação que não o devia ter feito, mas estava feito.
   – Obrigado pela compreensão. – disse Elisa e eu fiquei surpreso por ela não me dar uma das suas respostas de humor cáustico.
   Ela ficou pensativa e eu, calado.
   – Vou encomendar pizza. – disse por fim – Você gosta, não gosta? – perguntou num tom que denotava a convicção que a minha resposta só podia ser que gostava.
   – Adoro! – disse e era a verdade.
   – Então jantaremos pizza e beberemos o vinho tinto alentejano que escolhi com muito carinho para si... – decidiu ela.
   Pegou no telefone portátil e ligou.
   Com muito carinho para si... ficou a ecoar nos meus ouvidos.
   Eu fiquei ali sentado, eu pensava, eu estava rendido, fascinado com uma mulher que era puro mistério, que sendo tempestuosa, tinha em alguns momentos, rasgos de doçura... Que parecia ter a vida que queria e não a que lhe havia sido destinada, tudo ela parecia comandar.
   – Gosto de si, sabe, simpatizei consigo. – lembrava eu o que ela havia dito e questionava porque era eu a estar ali. Porquê?!...
   – Santiago... – chamou Elisa, certamente para escolhermos que pizza encomendar.


   Notas Finais
   Agradeço mais uma vez a Ivone Moreira a paciência que tem para corrigir o que escrevo.


   Texto(s) Relacionado(s)
   - Apenas Elisa,
   publicado a 16 de Dezembro de 2012.




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14 comentários:

  1. Depois de entrar, peço licença para sair, pois esta Elisa parece diferente das outras queridas, esta mulher tem muito para viver e conversar, com o Santiago! ;)
    Gostei! Gostei muito,ainda não aprendemos nada com ela, mas promete!
    A ti Vítor resta dar-te os parabéns por cada palavra que arrumas e descreves,cada vez mais e melhor...
    Um Chá ou um Vinho Alentejano? Escolhe! :D

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    1. Elisa tem uma personalidade muito própria... e Santiago parece começar a gostar.
      O próximo texto, que se irá chamar "A Primeira Garrafa", irá ter um bom vinho tinto alentejano como quase personagem ;)
      Beijo Borboleta com Asas

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  2. Um Bom Ano de 2013 sempre com paixão em sentir e acreditar nas "borboletas".

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    1. Obrigado Fernando Brás... Bom ano para ti também ;)
      Essas borboletas dão muito que falar...
      Abraço

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  3. Pronto, já acabei de ler mais um enlace desta história, que está a começar a nos proporcionar uma certa curiosidade desta personagem tão misteriosa e dura. Ela deve ser mesmo muito bonita e jeitosa para provocar uma certa instabilidade na população, ehehe, ainda mais de se apoderar do seu encanto para "escravizar" e "ridicularizar" os seus pretendentes. É o que se chama, uma mulher fatal com toda a sua audácia de superioridade e calculista, mantendo uma certa distância para não ser mal interpretada. Introduziste a cena da "borboleta" para quebrar o gelo, e deixaste as personagens tomarem um elegante rumo. Bem, gostei desta primeira abordagem, é sem dúvida muito interessante, estou muito entusiasmada para ler o desenvolvimento desta tão enigmática personagem. Quanto aos lapsos, acho que a palavra "veredicto" após o acordo ortográfico não leva o c. Bem amigo, não mates a história agora né? Livra-te disso!! Exijo desenvolvimento e conclusão. Beijokas, continua a nos enfeitiçar com as tuas ideias e já agora Feliz Ano Novo.

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    1. Elisa é encantadora, naturalmente encantadora ;)
      Santiago foi escolhido. Ela pode agir como age por estar condicionada por alguma vivência anterior, talvez seja isso, mas não me perguntes o quê porque nem mesmo eu ainda sei :) Ela ainda não me disse!

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  4. Já li, gostei muito e curiosíssima com a continuação.... promete esta história!!!! Obrigada e um beijinho...

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    1. Obrigado ;)
      A continuação está marcada para dia 13 de Janeiro às 00:00. Esse texto irá chamar-se "A Primeira Garrafa"...

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  5. Não o conheço. Mas reconheço o seu talento para a escrita criativa.
    Confesso que fiquei completamente presa à sua história de Elisa, e só parei mesmo no final.
    Acho que deve continuar esta misteriosa história de Elisa. E já agora adianto, conheço na vida real uma Elisa tal e qual personalisticamente a Elisa da sua história - e cujo nome também é Elisa.
    :)
    Boa continuação em 2013.
    Aguardo ansiosamente pela continuação da história de Elisa.
    Muito bom mesmo. Parabéns.

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    1. Muito obrigado Ana, não por achar que tenho talento, mas por ter gostado do que escrevo. Prometo continuar a tentar deliciar quem lê os meus textos, não só com esta encantadora Elisa, mas também com outras personagens e suas vivências... A continuação está prometida para dia 13 de Janeiro, o mote é uma garrafa de vinho tinto alentejano ;)
      Bom Ano de 2013 para a Ana...

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  6. Voltei a ficar com o sabor do crepe na boca e sem o prato...
    O que li é tão real e intenso, que em determinado momento senti que sabia o que se iria seguir no desenrolar da conversa, pois conheço um pouco uma mulher e um homem, (com outros nomes)que pronunciaram palavras iguais e idênticas...
    Fico ansiosamente a aguardar o desenrolar da história destas personagens.
    Feliz 2013 e não pare jamais de escrever!!

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    1. Decididamente alguém nos anda a roubar os crepes :) Quem será?!...
      Feliz Ano de 2013 e não irei parar de escrever, é algo que faço com prazer e que funciona como uma quase terapia...

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  7. FELIZ 2013 e que muitos sonhos virem realidade!!

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     O vídeo que pode ver em baixo é uma curta-metragem chamado Cupidity (ou Cupido, em português).

     A história é sobre uma empregada de mesa apaixonada por um cliente, mas que ele nunca reparou nela. Ela canta no restaurante onde trabalha e todos a aplaudem... menos o cliente por quem ela está interessada.

     Até que ela percebe o real motivo do desinteresse e recebe a ajuda de um Cupido. Veja por si mesmo: clique no play e emocione-se.