Tomamos Café


   Falei com os meus irmãos.
   Contei-lhes o que se havia passado com a minha mãe, do corte de relações entre nós, corte esse que para mim era para sempre. Ambos não se mostraram particularmente surpreendidos. Nem com as palavras proferidas pela minha mãe, nem muito menos, com a minha resposta às mesmas.
   Meu irmão mais novo ainda opinou que apesar de tudo ela era minha mãe. Sei que ele queria dizer que o corte de relações para sempre lhe parecia muito radical. Ele sempre fora muito ponderado, sem radicalismos mínimos ou de espécie alguma. A postura dele fez-me pensar.
   Para sempre dá sempre uma noção de demasiado tempo e isso fez-me perspetivar que me encontraria com minha mãe em ocasiões futuras. Era quase inevitável. Após desligar o telefone, senti mais do que nunca meu pai em mim, vi-me ali a pensar como ele, a sentir que não podia num qualquer espaço, ignorar a presença da minha mãe, como se de uma estranha se tratasse.
   Decidi que não a iria procurar jamais, não tinha essa necessidade, não lhe tinha afeto nem apego, estava decidida a separar-me dela como pessoa próxima, como numa qualquer circunstância da vida que separa duas pessoas, mas caso nos encontrássemos, eu iria naturalmente cumprimentá-la.
   Meu irmão mais velho foi um pouco mais frio, para além de não ficar surpreendido ainda disse:
   – Ela nunca se preocupou contigo, não te arrependas, foi uma boa maneira de fechares esse capítulo da tua vida.
   Ele fora frio, ou talvez, mais prático que os de mais... mas ele é um amor de pessoa em relação a quem gosta. Aliás, devido à diferença de idades, ele podia ser meu pai e não é difícil transferir para ele o papel que tinha para mim nosso pai. É quase uma herança que ele recebeu.
   Já não me recordo bem porquê, mas algures na minha adolescência, nosso pai estava a chamar-me à razão por um qualquer motivo e eu não estava a acatar. Meu irmão António – é esse seu nome – como nosso pai, ao presenciar a cena falou-me de tal forma que nosso pai se comoveu.
   Ficámos assustados porque vimos lágrimas nos olhos dele.
   – Que se passa pai? – perguntou António.
   – Nada. – disse ele tirando um lenço do bolso.
   – Então porque chora? – perguntei sentindo-me culpada.
   – Deve haver males que vêm por bem... – começou a falar ainda limpando as lágrimas – Senti que posso partir, que António olhará por ti não só como um irmão mas também como um pai. – concluiu.
   – Velho tonto! – disse António – Faltaram umas palmadas a esta menina, as que eu e o José levámos resultaram na perfeição... – continuou rindo – Você ainda cá vai andar muitos anos.
   Acabámos os três abraçados. Eu, o António e o... velho tonto.
   Disse aos meus irmãos que queria deixar aquela casa. Eles compreenderam a minha posição e o que eu estava a sentir, mas quando lhes falei da ideia de vender a casa, ambos foram muito claros... Não!
   No espaço de pouco mais de uma semana estava tudo pronto para mudar de residência e assim fiz. Voltaria apenas aquela casa quando algum dos meus irmãos viesse de férias.

* * *

   Já devidamente instalada na nova casa, faltava dar um rumo à minha vida. Queria algo pessoal, os negócios que o pai deixara e que eu supervisionava em nome da família, apesar da crise e da necessidade de os redimensionar, iam menos mal e o pai rodeara-se sempre de pessoas muito competentes.
   Mas um dia fez-se inesperadamente luz. Alguém sem querer ligou um interruptor.
   Eduardo fora meu colega de curso, mas não o terminara. Ele trabalhava num café e foi-lhe sempre muito complicado conciliar as coisas. Eu fora a esse café um par de vezes, ele era um daqueles empregados que não pára, que sozinho parece fazer tudo, não esquecer nada.
   Um dia reencontrei-o, já não o via há imenso tempo. Anos! Foi num centro comercial.
   – Eduardo!? – perguntei quando nos cruzámos.
   – Sim. – confirmou o transeunte.
   – Não te recordas de mim? – perguntei.
   – Bem, deixa-me cá consultar o arquivo. – começou por dizer e só podia ser ele, veio-me à memória o seu sentido de humor – Letra E. Acho que é Elisabete mas sem ser Beta, logo é Elisa. – concluiu.
   – Certo! – disse, como se ele tivesse acertado a uma pergunta de um qualquer concurso.
   – E o que ganho por ter acertado? – perguntou.
   – Tomamos café. – sugeri, como prémio.
   – Prémio oportuno. Aceito! – concordou Eduardo.
   Procurámos um sítio para tomar café, o que não era difícil por ali... a dificuldade era mesmo escolher... Lá escolhemos e ficamos um pouco à conversa sobre o passado que havíamos partilhado na faculdade. Falámos também dos colegas, dos caminhos seguidos por estes. Ele sabia de uns, eu de outros. E a dada altura, naquele encontro inesperado, surgiu a ideia.
   – Mas ainda continuas a trabalhar lá naquele café ou já tens o teu? – perguntei.
   – Nem uma coisa nem outra... – disse Eduardo ficando algo apreensivo.
   – Então? Que fazer agora? – perguntei curiosa.
   – Literalmente nada... – começou por dizer – Fiquei ontem sem trabalho...
   – Lamento muito, Eduardo... – disse com sinceridade.
   Ele ficou realmente incomodado.
   – Mas já tens alguma perspetiva em mente? – perguntei.
   – Nada, Elisa, foi tudo muito inesperado, na mente só tenho os dois filhos que preciso alimentar. – confessou – Desculpa, desabafar contigo, não somos propriamente íntimos, mas a verdade é que estou algo aterrorizado. – concluiu.
   Fiquei triste por ele, pelos filhos, rendida à sua sinceridade, consciente do drama em que entrara a sua vida.
   Mexeu comigo a situação de Eduardo, vi fotos dos filhos, eram lindos. Continuámos a falar e ele explicou como havia ficado sem trabalho, sem que nada o fizesse prever.
   – Porque não ficaste com o negócio, se era rentável? – perguntei-lhe.
   – Eu pensei nisso, mas não gosto de ser patrão, o que gosto mesmo é do contacto com as pessoas. Assustam-me as burocracias. – confidenciou.
   – Compreendo. – disse colocando-me no lugar dele – Recordo-me de ter ver trabalhar, fazia-me confusão como atendias tanta gente sem te esqueceres de nada.
   – Até eu ficava surpreendido comigo mesmo. – sorriu – De facto tenho boa memória e quando lidamos com as mesmas pessoas durante algum tempo ficamos a conhecer-lhe os hábitos...
   – E naturalmente as pessoas gostam, sentem-se valorizadas. – disse virando o raciocínio dele para o lado do cliente.
   – Sim, isso mesmo! – exclamou ele como se eu lhe tivesse tirado as palavras da boca.
   – É a tua vocação... – conclui. Ele confirmou com um gesto afirmativo de cabeça – Gostavas portanto de continuar no ramo?
   – Sim. – confirmou – Gostava de trabalhar nunca casa de chá, requintada e com menos barulho que um vulgar café. – finalizou sorrindo.
   Sabem quando nos pedem para a partir de uma palavra dizer outra que essa nos faz de imediato lembrar? Pois bem... À palavra chá eu respondo Cesária, ao nome Cesária associo uma expressão: mãe de verdade. Naquele instante tive uma visão.
   Olhei para o relógio, disse a Eduardo que tinha que ir... não tinha! Mas a minha cabeça começava a fervilhar de ideias. Pedi-lhe o número de telefone, disse-lhe que se soubesse de algum trabalho lhe ligaria.
   – Tudo menos ser patrão. – disse ele por graça.
   A ideia que sem querer Eduardo me dera não mais me largou, era algo perfeito para perpetuar a memória da minha mãe de verdade. Tudo fluía em mim como uma corrente vertiginosa... Cesária, Casa de Chá... até nome para a casa já tinha. Eduardo seria meu sócio, ele daria o know-how e eu o capital. Tinha que ligar ao António. Fi-lo à noite.
   – Fantástico Elisa! – disse António maravilhado – A Cesária merece que lhe faças essa homenagem, onde quer que ela esteja irá ficar feliz e olhar por ti.
   – Tenho então o teu apoio? Moral, claro está... – perguntei.
   – Claro que sim. Todo. Mas olha lá o tal Eduardo é de confiança? – perguntou António um pouco apreensivo.
   – Sim, absolutamente, e tendo ele filhos para alimentar... – comecei por dizer.
   – Já vi tudo, todas as tuas motivações, não há dúvida de quem és filha. – interrompeu António – Ele deixou-nos uma verdadeira herança em ti mesma...
   – Pára com isso, António... – pedi – Ainda me fazes chorar.
   – Já agora por lembrar o velho António... – era assim que meu irmão se referia a nosso pai e este quando vivo chamava ao filho: novo António – Arranja lá na tua casa de chá um cantinho para bons vinhos, eu não gosto de chá e assim também homenageavas nosso pai.
   Fiquei calada, perplexa, estupefacta... Que grande ideia, pensei.
   – Estás aí, Elisa? Queres ver que a porra da chamada caiu... – interrompeu António o meu súbito silêncio.
   – Estou aqui... – disse rindo – Saíste-me cá um idiota.
   – Tu não me ofendas rapariga, ainda vais a tempo de levar umas palmadas. – disse António quase numa gargalhada – Quero 5% dos lucros...
   No dia seguinte liguei ao Eduardo e pedi-lhe que viesse ter comigo. Falei-lhe das ideias que tinha, perguntei-lhe o que pensava sobre a viabilidade das mesmas e se estava disposto a ser meu sócio.
   Ele respondeu-me com um abraço e com os olhos inundados em lágrimas. Presumi que era sim a sua resposta.


   Notas Finais
   Agradeço mais uma vez à minha amiga Ivone Moreira a paciência que tem para corrigir o que escrevo.


   Texto(s) Relacionado(s)
   - Apenas Elisa,
      publicado a 16 de Dezembro de 2012.
   - Chá com Elisa,
      publicado a 30 de Dezembro de 2012.
   - Um Vinho de Além Tejo,
      publicado a 11 de Janeiro de 2013.
   - Um Quadro Vivo,
      publicado a 20 de Janeiro de 2013.
   - Rescaldo Alc. 14,0% vol. 750ml,
      publicado a 27 de Janeiro de 2013.
   - Honrar o Passado,
      publicado a 3 de Fevereiro de 2013.




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15 comentários:

  1. Aqui neste texto existe um belo retrato dos sentimentos que Elisa possui, tanto com a família, como com quem considera amigo…aliás o modo como ficou incomodada com o facto do Eduardo ter uma família e estar desempregado.
    “Mexeu comigo a situação de Eduardo, vi fotos dos filhos, eram lindos. “
    Com a medida que tomou, honrou o pai e a sua inesquecível Cesária.
    É uma mulher deveras surpreendente!
    Gostei do que li e por mim, continuava!!

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    1. Neste texto quis acentuar a parecença dela com o falecido pai, que segundo ela era "o melhor ser humano que alguma vez irei conhecer".
      Estou já a trabalhar no próximo ;)

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  2. Elisa é apesar das suas "batalhas interiores" uma mulher com visão, com sentido de oportunidade e de disponibilidade para ajudar o próximo. Deve de estar à procura do seu proprio rumo. Parece que encontrou a sua estrada. Resta-lhe caminhar.
    Mais uma vez gostei do que li e agora espero pelo próximo :)

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    1. De alguma forma Elisa apenas esteve que estar atenta e perceber os sinais, sem o querer o transeunte Eduardo e o irmão António foram em encontro do rumo que ela procurava para honrar o passado e por consequências as pessoas mais importantes para ela.
      Parece-me que agora ela poderá voltar-se de novo para Santiago ou quem sabe explicar-nos porque se interessou ele.
      Já estou a trabalhar no próximo, que será naturalmente publicado a 17 de Fevereiro ;)

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  3. Aqui vai a minha opinião. Globalmente estás a atrair os leitores para não pararem de ler mais um capítulo desta história e isso é muito bom. É isso que difere dos bons escritores dos maus, e nisso estás de parabéns. Consegues persuadir o teu talento de escritor.
    Em relação a esta parte "Tomamos Café" é mais um trecho a justificar o presente, muito bem enquadrado e descrito, não "perdendo o fio à meada" da ideia fulcral da história. Sinceramente não gostei da ideia do Eduardo, que desistiu de um bom negócio para dar a mão ao desemprego, tendo dois filhos para governar. Isso mostra irresponsabilidade! Poderias ter dado outro tipo de argumento mais credível e inteligente para esta personagem, que vai ser sócio e o braço direito da nossa heroína. Para além desta crítica, também tenho a salientar o seguinte: tu jogas muitas vezes com o narrador participante, em que não é sempre o mesmo narrador a contar a história, e isso por vezes fica um pouco confuso. De resto, estou a gostar imenso desta história, continua a nos motivar e a encantar e muita inspiração para os próximos volumes. Beijokas!

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    1. Bem hajas por me considerares um escritor... e dos bons ;)
      No que se refere à opção de Eduardo, é criticável e não é... Há uns anos o meu pai foi colocado ligeiramente acima das funções que tinha, para além de continuar a fazer os seus trabalhos agrícolas, colocaram-lhe também pessoas sob sua responsabilidade... Entrou em depressão, não tinha vocação para tal...
      A verdade é que nem toda a gente pode ser patrão, para gerir recursos humanos. Eduardo ficara sem trabalho no dia anterior à conversa com Elisa. Vamos supor que ele recebeu tudo a que tinha direito e que até tinha carta para o fundo de desemprego, que era um pessoa poupada e sem vícios... Logo o seu pânico e situação era ainda relativa e não propriamente trágica... naquela altura...
      Fica confuso porque não estás a ler a história de fio a pavio e isso naturalmente, no prazo de 8 dias, pelo menos, faz-te esquecer pormenores... eu mesmo tenho que reler os textos anteriores para continuar a escrever, para não entrar em contradição com o que já foi dito...
      Gosto de escrever assim, gosto de contar uma versão da história, vista por uma personagem e depois vir a outra e contar as nuances que ficaram em aberto primeiramente.
      Beijinhos ;)

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  4. Bom dia, Jerónimo.
    De texto em texto vais se aproximando de tua marca. Pelo que vejo, se continuares neste ritmo, vais concretizar de pronto a meta estabelecida para o ano. Estamos contigo...

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    1. Bom dia Zilmara ;)
      Sim, penso que a este ritmo vou até ultrapassar o que me propôs a escrever este ano.
      Esta história está a crescer, como uma árvore, começa a ter muitos ramos. Vamos ver onde isto vai dar.
      Obrigado pelo apoio...

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  5. Estou fascinada com o romance... mas... de semana a semana é muito tempo de espera não poderias escrever um pouco mais durante a semana :) sou gulosa pela leitura... Bom Carnaval Jerónimo...

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    1. É de semana a semana e já foi uma conquista de quem lê o que escrevo, pois quando comecei a saga de Elisa, o meu "compromisso" era um texto de 15 em 15 dias.
      Não sou um particular apreciador do Carnaval, por isso estou a escrever o próximo texto, que será publicado no próximo sábado...

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  6. Elisa, deveras uma mulher surpreendente! Adorei o que li...

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  7. Aproveitando o facto de estar a trabalhar neste dia de carnaval...li com bastante calma mais um episódio, acho que fiquei a gostar mais da Elisa...
    Mostrou mais um bocadinho da sua natureza, e espero o próximo
    Beijinho :)

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    1. Bem, antes de mais aproveito para dizer que nunca fui grande adepto do Carnaval. Vá-se lá saber porquê...
      Começamos por conhecer Elisa vista pelos olhos de Santiago, isto quer dizer que tudo o vimos é aquilo que é dado a ver e isso nunca a totalidade do que se é na realidade. Todos nós temos a nossa tão única forma de nos protegermos. Elisa tem no humor um disfarce, mas é uma pessoa doce, com valores...
      Beijinhos

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     O vídeo que pode ver em baixo é uma curta-metragem chamado Cupidity (ou Cupido, em português).

     A história é sobre uma empregada de mesa apaixonada por um cliente, mas que ele nunca reparou nela. Ela canta no restaurante onde trabalha e todos a aplaudem... menos o cliente por quem ela está interessada.

     Até que ela percebe o real motivo do desinteresse e recebe a ajuda de um Cupido. Veja por si mesmo: clique no play e emocione-se.