Débeis Alicerces Caídos


   Tudo fazia agora sentido.
   Santiago ficou a olhar o vazio. Eu sem saber o que dizer ou fazer depois de ouvir aquela história, mas também sentia algo de bom, não qualquer espécie de felicidade mas a convicção que tudo aquilo contribuía para eu gostar ainda mais dele. Não por pena, mas por compaixão, por achar que ele não merecia continuar a viver aquela dor.
   Por outro lado, senti medo, medo de me apaixonar por aquele homem... Não, de me apaixonar não, mas do meu eventual amor por ele não ser suficiente para o ressuscitar do estado de letargia emocional em que entrara a sua vida após a morte da esposa e do filho que esta carregava no ventre.
   Senti que me deslocava num rumo sem volta.
   Tive uma certeza que não sei explicar: a certeza que aquela seria apenas uma de muitas vezes que ele estaria ali, perto de mim, naquele banco a olhar a cidade.
   Ele baixara entretanto o rosto, apoiava-o numa espécie de concha feita pelas suas mãos e os cotovelos, por sua vez, apoiavam-se nos joelhos. Apetecia-me tocar-lhe, dar-lhe afeto, dizer que estava ali, que tinha todo o meu apoio. Mas meus movimentos estavam presos.
   – Elisa, você não se devia ter aproximado de mim... – disse ele sem deixar aquela posição. Fiquei surpreendida.
   – Porque não? – perguntei de imediato.
   Santiago levantou o rosto, olhou-me fixamente, senti que me olhava com preocupação.
   – Não sou boa companhia... – disse ele.
   – Isso é uma opinião que não lhe compete. – contrapus o que ele dissera.
   – Você é uma mulher bonita, inteligente, com sentido de humor... – começou por dizer – Agradeço a confiança que depositou em mim, todos os convites simpáticos que me fez, mas devem acabar por aqui os nossos encontros... – ficou a olhar-me.
   – Não estou a entender. – disse.
   – Não tenho nada para lhe oferecer... Nada! – disse quase comovido – Antes que o que quer que seja esteja para acontecer quero que saiba que não posso retribuir nada, não consigo, o tempo passa mas em mim nada muda, parece que ainda ontem recebi a notícia, que ainda há pouco cheguei do funeral...
   – Eu até compreendo o que sente, mas não aceito que decida por mim ou que coloque deliberadamente barreiras em coisas que se devem deixar viver por si mesmas. – argumentei.
   – Você não compreende... – disse nervoso, comovido – Eu não consigo! – finalizou quase proferindo as palavras silaba a silaba e as lágrimas começavam a correr-lhe rosto abaixo.
   – Se não tentar não consegue, isso é certo. – disse.
   Ele ficou a olhar-me.

* * *

   Eu não a queria magoar, de todo, não queria mesmo... Fui, eventualmente, pretensioso ao supor que ela se podia interessar por mim, mas tinha que prever tudo. Ser honesto com ela e também comigo mesmo. Preocupava-me com ela, queria-lhe bem e eu não me sentia à altura de retribuir os sentimentos que pudessem surgir. Pretensiosamente pensado. Mas tinha que prever tudo.
   Elisa era pragmática, obviamente que se eu tentasse não iria conseguir, mas não me sentia capaz de agir. Estava resignado, habituara-me àquela vida. A uma vida que não era viver.
   Olhávamo-nos. Sentia-me repreendido.
   – Tem que parar de se martirizar, deve reabrir os seus horizontes, deve parar de fechar portas e janelas. – argumentou ela – Deixe-me ajudar, deixe-me estar presente na sua vida, é aí que quero estar... – finalizou.
   Sei que devia fazer o que ela dizia, sei que tinha a razão do seu lado, mas o meu passado e a convicção que tinha, que perdera a capacidade de começar de novo, não me deixavam ter alento.
   Continuávamos a olharmo-nos, mas a minha cabeça abanava em negação.
   – Vamos viver um dia de cada vez. – propôs ela.
   – Não vale a pena, o meu tempo passou. – disse.
   Ela baixou o rosto. Levantou-o pouco depois.
   – O seu tempo passou!? – disse ela indignada – Você tem trinta e poucos anos, não tem noventa, você tem noção do que está a dizer!? Da profunda insensatez dessas palavras!?
   Elisa estava formalmente a repreender-me, a chamar-me à razão, algo que em 3 anos ninguém fizera porque eu fugira. Aquilo que ela dissera, a veemência das perguntas, começava a abanar-me, a mexer comigo...
   – Acha que é esta vida que Laura quereria para si? – perguntou ela.
   As lágrimas corriam-me rosto abaixo, sem parar. Levantei-me. Queria fugir dali, daquelas perguntas. Ela levantou-se também, percebera a minha intenção.
   – Você não vai a lugar algum. – ordenou ela barrando a minha passagem, quase me maltratando o peito – Eu ainda não terminei...
   Colocou as mãos no meu rosto. Limpou uma ou outra lágrima, olhando-me bem fundo nos meus olhos e calmamente...
   – Acha que é o homem, o pai, de que seu filho teria orgulho? Acha? – perguntou ela.
   Não me batendo, ela acertou-me em cheio com dois fortes murros... Era isso que eram aquelas duas perguntas.
   Laura não gostaria de ver assim, se me pudesse ver. Um filho não podia ter orgulho num pai, no homem que me tornara.
   Elisa abalara em definitivo os meus alicerces, certo é que estes eram débeis, mas sem ninguém a estes chegar estes teriam continuado a fazer a sua função. Mas ela alcançara-os.
   Não sei como iria ser daí para a frente, mas sabia que não seria de todo igual. Os alicerces estavam derrubados.

* * *

   Se calhar fui muito dura com ele, mas tinha que ser. Sei da minha impulsividade, de alguma falta de controlo, de muita espontaneidade, sobretudo quando em causa está um amigo. O seu bem-estar.
   Não me sentiria bem se assim não fosse, gosto de ser frontal, não só pelo outro mas também por mim mesma. Não gosto de esconder/omitir o que penso. Quanto mais cedo fizer o que tem que ser feito, disser o que tem que ser dito, melhor me sinto comigo mesma.
   Percebi que Santiago chegara onde chegara, ou melhor, não saía de onde encravara porque ninguém ousava, ou fora capaz, de chegar até ele e confrontá-lo com a sua atitude perante a vida.
   Ser amigo de alguém não é só dar palmadinhas nas costas, concordar com tudo sem questionar, é sim dizer o que se pensa, sem receio de tocar nas feridas. Ainda ninguém, pelos vistos, tinha tido a capacidade de o fazer com Santiago, eu comprometia-me a fazê-lo. Porque simpatizei com ele, porque lhe queria bem, porque... enfim! Porque me dizia a intuição para assim agir.
   Mas senti-me arrependida, não pelo conteúdo do que dissera, mas pela forma rude como o fizera e...

* * *

   Aquelas duas perguntas deixaram-me sem resposta.
   Mas pior que não lhe conseguir sonorizar qualquer resposta foi constatar, perante mim mesmo, que Laura não quereria para mim a vida que eu levava e que nosso filho não teria orgulho no homem que me tornei.
   Sentia-me envergonhado, revoltado comigo mesmo. Elisa terá percebido isso, eventualmente, e...
   Abraçou-me.


   Notas Finais
   Agradeço mais uma vez à minha amiga Ivone Moreira a paciência que tem para corrigir o que escrevo.

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23 comentários:

  1. E... Adorei! Passou-se de uma fase de toques de pele, de laivos de sensualidade e desejo para toques de alma, com laivos de profunda e genuína preocupação pelo bem estar de quem se gosta/ama... passamos para os toques de amor.
    Boa sorte, Santiago! Perseverança, Elisa.

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    1. Obrigado pela fidelidade ;)
      Primeiro são sempre sentidos mas supérfluos que são chamados, que nos estimulam a reparar mais nesta ou naquela pessoa... mas o que realmente importa vem depois.
      O depois já chegou junto de Santiago e Elisa... e ao que me parece está a surgir algo muito bom entre ambos, o querer bem, o desejar melhor ao outro e o querer contribuir para isso... isto pode ser uma boa base para o surgir do amor entre ambos...
      Elisa não me parece ir desistir, Santiago parece-me ainda ter muito que "trabalhar". Permitirá ele que Elisa tome como que as rédeas!?

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  2. Ana Paula Curto Venâncio8 de março de 2013 às 12:42

    A atitude da Elisa em nada me surpreendeu... Revi-me na sua espontaneidade quando está em causa o bem estar de alguém que gostamos, e o nosso próprio bem estar... é escusado dizer que gostei muito do texto...

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    1. Obrigado Ana Paula ;)
      A questão que agora está no ar é se Elisa será capaz de ajudar Santiago a renascer para a vida ;)

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    2. Ana Paula Curto Venâncio8 de março de 2013 às 12:49

      Ele tem de querer verdadeiramente!... mas acredito na força persuasiva da Elisa para o ajudar a querer... o primeiro passo foi dado, pois ele já foi bastante abanado.

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    3. Abanado é favor ;)
      Santiago levou foi um forte abanão e desde já há a destacar o facto de Elisa o ter feito, pois ao que parece ninguém antes o havia conseguido fazer. Ela já tem esse mérito...

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    4. Ana Paula Curto Venâncio8 de março de 2013 às 12:59

      Sim... acredito na Elisa.

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  3. Pois... mais uma historia emocionante... até ficar com a lágrima no olho.

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  4. Gostei muito, continua uma história muito cativante. Tenho quase a certeza que se estão a criar laços muito fortes entre os dois, Santiago já conseguiu amolecer um bocadinho, e começar a abrir uma fresta nas barreiras que ele próprio criou, obrigada por mais um bom momento de leitura, beijinho Vitor :)

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    1. Exactamente Fernanda ;)
      Acho que o aspecto mais importante, que se tornou o mais relevante, é de facto saber até que ponto Santiago está disposto a mudar a sua forma de estar e a aceitar a ajuda que Elisa parece estar disposta a dar-lhe...
      Lembro que apesar de tudo, ele viveu 3 anos escondido mas equilibrado, a viver aquela dor à sua maneira... Ele não gostou muito quando Elisa apareceu no Banco a pedir-lhe satisfações, o que pode ser indicador de que aceitar a ajuda dela pode ser complicado...
      Beijinhos

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    2. Acho que não será muito difícil ele aceitar a ajuda de Elisa, afinal de contas ele já sentiu a sua falta e foi procurá-la...

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    3. Hummm...
      Uma coisa é sentir a falta de alguém e procurá-la, ainda que não se perceba muito bem o porquê... outra será aceitar a ajuda e as formas que a outra pessoa pode ter para ajudar ;)

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  5. Sónia Freitas Terra8 de março de 2013 às 21:27

    Gosto do que leio... romance e muito mistério... e boa dose de inspiração... uma óptima combinação... não esperava a última reviravolta.

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    1. Quanto à última reviravolta... tinha que haver algo muito relevante para justificar a forma de agir de Santiago.
      Obrigado por leres o que escrevo ;)
      Beijos

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  6. Este texto tocou-me fortemente e sinto-me emocionada, porque sempre fui lutadora e em determinada altura abandonei, até que uma amiga do coração me abanou, tal como Elisa fez ao Santiago.
    Surtiu efeito estrondoso...
    Ninguém se convença que palmadinhas nas costas, nos fazem reagir.
    A amizade entre os dois já é muito grande e no que toca à Elisa, já será uma amizade a passar para o amor.
    Acredito que ela vai conseguir, sendo persistente e ele precisa de mais abanões para voltar à realidade da vida, derrubando os muros que criou.
    Como hoje li dois capítulos, como lhe chamo, continuava no terceiro.
    Belo momento de leitura antes de ir dormir.

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    1. Gosto que os meus textos toquem as pessoas, agrada-me mexer com as suas emoções, gosto que se identifiquem com o que escrevo.
      Sim, penso que já existe amizade, há uma preocupação mutua... mas acho que Santiago ainda não se apercebeu do que está a acontecer porque está ainda algo fechado à recepção de ajuda.
      Não haja dúvida que ela será persistente, mas isso poderá esbarrar um pouco com a individualidade e solidão de Santiago...
      Temos que esperar para ver ;)

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  7. Sempre pensamos que nunca temos "nada" para dar... Mas como alguém disse: "dou-te o meu coração, e não é pouco". Haverá sempre alguém capaz de encontrar e sobrepor os nossos alicerces um dia, fazendo-os desmoronar de todo? Para pensar... **

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    1. Acho que sim...
      Que haverá sempre alguém capaz de derrubar os nossos alicerces quando estamos fragilizados e esconder-nos do mundo das emoções.
      Haverá sempre alguém capaz de nos tocar o coração...
      Beijinhos

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  8. As personagens encontram-se num momento mais introspectivo. A vida passou a acontecer dentro de cada um. A viagem pelo passado trouxe o sofrimento para o presente. Este momento era crucial para o recomeço. Elisa e Santiago estão a precisar de emoções fortes que os transportem para uma dimensão superior e os faça esquecer do quanto dói sermos mortais!!

    Continuação de boa inspiração**
    Beijinho

    Marta

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    1. Gostei muito desta espécie de ponto de situação ;)
      As personagens ao encontrarem-se no presente e ao olharem o futuro tiveram que fazer uma visita ao passado. E, se calhar, ainda vão continuar nessa fase...
      Obrigado pelo comentário e pela simpatia.
      Beijinho

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  9. Desculpa de ontem não ter feito os trabalhos de casa como te tinha prometido, mas hoje já os fiz, e aqui vai a minha opinião.
    Bem, a história está a alcançar uma magnitude de tal forma que nos deixa sempre com "água na boca" para saber mais e mais desta dramática narração. Mas isso o que se passa com o nosso Santiago é real, depois de um desgosto profundo há sempre aquela situação de negação e estagnação, em que paramos no tempo e deixamos a vida rolar, sem grande vontade de rasgar novos rumos e descobrir novos horizontes. A alma morre lentamente sem perspectivas futuras. E é neste percalço que aparece a nossa Elisa cheia de energia e beleza, capaz de lhe ressurgir a esperança de alcançar a plenitude e a luz que lhe fazia falta. Ela à a pessoa perfeita para este renascimento. Olha, estou a adorar mesmo esta história, tem um fundo muito bom e está muito bem contada. Muita inspiração para os próximos episódios. Beijinhos!

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     O vídeo que pode ver em baixo é uma curta-metragem chamado Cupidity (ou Cupido, em português).

     A história é sobre uma empregada de mesa apaixonada por um cliente, mas que ele nunca reparou nela. Ela canta no restaurante onde trabalha e todos a aplaudem... menos o cliente por quem ela está interessada.

     Até que ela percebe o real motivo do desinteresse e recebe a ajuda de um Cupido. Veja por si mesmo: clique no play e emocione-se.