Suite do Piano


   Santiago abraçou-me também, ainda que timidamente.
   Quando ele parecia ter deixado toda a sua guarda para trás, naquele abraço que começara meu, mas que depois se tornou plural, nosso, senti um arrepio interior, uma sensação de chegar a um lugar que procurava mas que não sabia onde, nem em quem o procurar. Porque, por ventura, não se procura: acha-se, encontra-se.
   Ele apertou-me um pouco mais, o abraço meu que depois se tornou nosso, tornou-se dele... Senti o coração bater mais forte, tive uma súbita vontade de ser daquele homem. Parecia que queria ficar assim para sempre.
   – Obrigado! – disse ele como que me acordando das minhas sensações.
   – Não tem de quê, nós vamos conseguir. – disse-lhe bem perto do ouvido e senti-o retrair-se um pouco.

* * *

   Aquele nós soou-me estranho... muito estranho...
   Como que senti Elisa a querer ser parte importante, determinante, nas minhas resoluções. Assustou-me aquele nós, assustou-me não ser capaz, apavorado fiquei perante a possibilidade de não ser capaz, de... de a desiludir...
   Fazia-me impressão, preocupava-me desiludi-la. Eu estava profundamente confuso com tudo o que se passava.
   Elisa abraçou-me com força, como havia feito no início daquele abraço.

* * *

   Comecei a perceber que tinha, pelo menos naquele instante, que me focar mais nele que em mim própria, mais no ajudá-lo, mais no estar atenta às reações dele, do que propriamente às minhas sensações.
   Ali ficámos mais algum tempo abraçados. Pensava para comigo, tinha que tirar o foco da história que ele me contara, como que para ele recuperar um pouco do sofrimento que naturalmente lhe trazia as memórias. Havia algo que tinha vontade de lhe contar, sobre mim, e dizer-lhe como a sua maneira de ser me deixava tranquila. Eu estava farta de pessoas interesseiras.
   Terminei aquele abraço.
   – Gostava de lhe apresentar a divisão mais intima da minha casa. – disse, dando-lhe a mão e consciente que o podia deixar assustado, mas fi-lo para que ele se preocupasse apenas com o momento.
   Como não podia deixar de ser, ele ficou espantado. Apreensivo.
   – Esteja descansado, não é o início de qualquer proposta indecente. – expliquei quase rindo.
   – Que divisão é essa? – perguntou, já não apreensivo, mas curioso.
   – A suite do piano. – informei.
   – A suite do piano! – exclamou ele surpreso.
   – Sim, já vai ver. – disse sorrindo – Não acho que um piano merece uma suite? – perguntei.
   – Imagino que sim. – concordou ele, embora não muito convencido.

* * *

   A suite do piano era um amplo quarto, que ocupava quase todo o espaço do andar superior do duplex. Estava muito bem decorado, simples mas muito elegante. Ela tinha bom gosto. Não me pareceu que aquele quarto fosse vulgarmente usado por ela. E, de facto, havia um piano...
   – Gosta? – perguntou ela.
   – Sim. – respondi, embora por certo não com o entusiasmo que ela esperaria, que era espectável. Ela olhou-me com um ar bastante sério.
   – Posso fazer-lhe uma pergunta? – questionou ela e só podia ser um pergunta muito séria, pela menos para ela, porque ela raramente perguntava se podia perguntar o que quer que fosse, perguntava e pronto!
   – Sim. – respondi prontamente.
   – Você não liga muito... como hei-de dizer?... aos bens, sei lá, à riqueza? – perguntou ela.
   Sorri. Mas ela ficara séria.
   – Sinceramente? – perguntei.
   – Sim, quero que seja sempre sincero comigo! – disse ela muito, muito séria.
   – Não ligo muito, claro que gosto de apreciar, mas não tenho a ambição de possuir coisas, comprar coisas e mais coisas... – comecei por dizer – Penso que herdei a simplicidade dos meus pais.
   Ela ficou pensativa.
   – Você é diferente. – opinou ela. Pareceu-me um desabafo.
   – Como assim diferente? – perguntei curioso.
   – É uma longa história. – disse ela.
   – Eu tenho tempo. – disse simulando um olhar ao relógio que nem sequer usava.
   – Quer mesmo saber? – perguntou ela.
   – Quero sim... – disse com sinceridade.
   – Então vamos sentarmo-nos. – convidou ela.
   Sentámo-nos num confortável sofá.

* * *

   Normalmente diz-se que não há duas sem três. Eu estou em condições de dizer que não há três sem quatro.
   À morte do meu pai, à morte de Cesária e ao corte de relações com minha mãe... há que juntar o fim de um namoro de muitos anos. Hoje sei que ele apenas não passava de um parasita. Conhecera-o na faculdade, era aquilo a que podemos chamar um filho de boas famílias, de uma família que fora muito rica há umas décadas atrás mas que entrara em decadência.
   Não importa pormenorizar, importa apenas falar da rotura após algum tempo a deixar andar, porque é esse facto que vai ao encontro do mais relevante neste episódio da minha vida. Meu pai não gostava muito dele. Eu, no início, gostava muito dele, apaixonara-me, mas à medida que o fui conhecendo apercebi-me da pessoa que ele era, mas como mais ninguém apareceu e tocou o meu coração, deixei, admito, aquela relação arrastar-se bem mais do que deveria. Minha mãe adorava-o. Afinal de contas o propósito de ambos era semelhante, viver à custa de alguém. Viver de fachadas e aparências. Mentiras e hipocrisias.
   No dia do funeral do meu pai, o meu namorado não estava a meu lado, oficialmente estava a trabalhar. Foi a gota que fez transbordar o copo que eu estava cansada de manter.
   Vim a saber uns dias mais tarde que afinal não fora trabalhar, mas sim jogar ténis com os amigos. Não o confrontei com isso. Não apareceu na minha frente durante uma semana e tendo em conta o facto dele saber da minha grande ligação a meu pai, o comportamento dele foi de uma desumanidade extrema. Telefonava apenas perguntando se eu estava bem e justificava a ausência com muito trabalho e cansaço deste resultante.
   Quando apareceu, passada uma semana, trazia flores. E jamais podia imaginar o que o trazia, nunca imaginei que pudesse ser tão cara de pau, fiquei absolutamente estupefacta... e não é fácil alguém surpreender-me a tal ponto... mas ele conseguiu. Pela primeira mas também pela última vez.
   – Acho que devíamos casar. – disse ele.
   – Como!? – perguntei pensando ter ouvido mal.
   – Devíamos casar, já namoramos há imenso tempo, está mais que na altura de o fazer. – disse numa convicção perfeitamente... convicta. Absolutamente desfasado da realidade das coisas, inconsciente das suas ações e parecendo não me conhecer minimamente.
   – Com certeza. – disse eu parecendo acatar o que ele acabara de dizer – Tens razão... Já namoramos há tempo de mais.
   – Se quiseres posso começar a tratar das coisas. – disse ele numa perfeita alucinação, só podia.
   – Sim, faz isso, mas trata de tudo para casarmos com total separação de bens. – disse com uma calma extrema, extrema era a minha estupefação.
   – Como assim? Isso não é o normal. – começou por dizer – Tu não sabes, não é assim que se faz... – informou ele sobrevalorizando, assim parecia, a minha inteligência.
   – Não!? – interrompi – Mas tu queres casar porquê?
   Ele ficou calado.
   – Penso que seja por amor a mim e não ao bem-estar que pensas que terás casando comigo, certo? – continuei.
   Ele permanecia em silêncio.
   – Vai lá tratar do casamento. – ordenei – Mas não te esqueças, em total separação de bens...
   Voltei-lhe as costas e foi pessoa que nunca mais vi.
   Mas como vivemos num mundo em que a informação, verídica e não verídica, circula a grande velocidade... Ouvi dizer que a vida dele e da sua família não vai nada bem nos dias que correm.

* * *

   Tive vontade de rir. Não da história pela totalidade, mas pela forma como Elisa encarou a situação. Sorri.
   – Acha piada, Santiago? – perguntou Elisa surpresa com o sorriso.
   – Perdão, Elisa, não estava a sorrir pela situação que viveu, mas pela sua reação, de como se viu livre do oportunista filho de boas famílias. – esclareci.
   – Ah bem! – sorriu ela também.
   – Agora percebo o motivo por que me chamou diferente, estava a comparar. – conclui.
   – Bingo. – disse ela.
   Sorrimos os dois, mas aquela história do nós ainda não me abandonara. E o facto dela ter feito uma comparação entre mim e um ex-namorado, vinha ainda mais ao encontro da minha apreensão.
   Não me sentia capaz de carregar com a responsabilidade do nós, daquela entidade que Elisa me levara a pensar.
   – Realmente o seu ex-namorado teve uma cara de pau do tamanho do mundo. – refleti – Em que mundo é que ele vive? Com a morte do seu pai, se ele a amava de verdade, só tinha era que estar consigo e ponto final.
   – Sabe, gosto de si. – confessou Elisa.
   – E devo dizer que você esteve muito bem, adorava ter visto essa cena... – confidenciei.
   – Mas tinha que rir baixinho. – disse ela a sorrir e depois ficando mais séria – A minha mãe viu, mas para seu próprio bem, ainda bem que nada disse. Aliás acredito que aquele pedido e as flores tinham o dedo dela.
   – Sim, sei ser muito discreto. – disse.
   – Bem, mas toda essa história já é passado... – concluiu Elisa.
   – Presumo que não foi difícil deixá-lo? – perguntei.
   – Sim, mais cedo ou mais tarde iria suceder, já não o amava, habituara-me a ele. – confidenciou ela.
   – Parece-me... – comecei a opinar.
   – Que o deixar andar não é uma reação minha. – interrompeu indo ao encontro do que eu estava a pensar.
   – Isso mesmo! – concordei.
   – Pois, ainda hoje me pergunto como foi possível, devia estar cega e burra quando me apaixonei por ele... – desabafou.
   Ficámos uns instantes em silêncio. Eu pensava tanta coisa naqueles instantes, mas acima de tudo estava com medo, sentia-me num palco mas sem saber o meu texto... Medo de quê? Do desconhecido, de não estar à altura do que estivesse para vir.

* * *

   Aquele nosso encontro estava demasiado retrospetivo.
   Senti que tínhamos que terminar com aqueles assuntos, mudar de cenário. Da minha parte, a minha história, estava mais que ultrapassada, apenas me chamou à atenção o quanto Santiago era diferente do meu ex-namorado... Mas a história de Santiago era bem mais marcante. Apetecia abraça-lo, dar-lhe afeto... algo que já há muito não sentia por alguém, mas receava ser prematuro. Receava também deixar-me ir, sem pensar muito, fazer sem mais nem menos algo que me apetecesse fazer num determinado instante. Receava, portanto, também a mim mesma.

* * *

   Elisa terminou aquele escasso período de silêncio.
   – Vou tocar piano para si. – informou Elisa.
   – Você sabe tocar piano? – perguntei.
   – Sim, desde criança... – contou ela.
   – Faz-me confusão como é que quem toca piano consegue usar todas aquelas teclas, toda aquela ginástica dos dedos. – demonstrei assim a minha admiração por quem sabe tocar tal instrumento.
   – É uma questão de prática. – disse ela como se fosse fácil – Venha... – disse pegando-me na mão. Muito ela gostava de me pegar na mão.
   Fomos até junto do piano.
   Elisa sentou-se naquele banco característico dos pianos, mais largo e comprido... Não percebo muito de pianos, mas sei que aquele era um piano de cauda. Eu fiquei naquela parte onde começa a cauda do piano. Preparei-me para a ouvir tocar.
   Pareceu começar a tocar nas teclas um pouco sem nexo, mas passados alguns instantes depois percebi que era o tema Para Elisa de Beethoven. Não podia dizer que havia pesquisado e encontrado coisas na net sob o pretexto de ter escutado alguém dizer que se ouvia piano vindo do apartamento de dela, aliás do mesmo onde agora me encontrava. Tocou durante 2 ou 3 minutos.
   – Conhece? – perguntou ela fazendo uma pausa.
   – Não sei de quem é, nem como se chama o tema, mas já ouvi algures e mais de que uma vez. – confidenciei.
   – Chama-se Para Elisa... – disse ela.
   – É para si, portanto. – disse sorrindo.
   – Não, o compositor não é contemporâneo, ao que consta este tema foi composto para uma tal Therese Malfatti. – informou ela.
   – Quem? – perguntei como se não soubesse, como se não tive feito uma pesquisa no youtube e outra na wikipédia.
   – Therese Malfatti, alegada musa do compositor alemão Ludwig Van Beethoven. – informou Elisa.
   – De Beethoven já ouvi falar, mas conheço pouco de música clássica. – disse como que lamentando a minha ignorância.
   – Espere aí, como você é um velhote. – disse ela sorrindo – Veja lá se conhece esta...
   Pouco depois começou a tocar. Reconheci os acordes. Não havia batida, mas reconheci o tema. Sorri em sinal de que conhecia.
   Ela tocava Robert Miles, o tema Children.



   Notas Finais
   Agradeço mais uma vez à minha amiga Ivone Moreira a paciência que tem para corrigir o que escrevo.

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5 comentários:

  1. Este foi de facto o episódio que mais gostei. O passado está esclarecido e o futuro promete. O puzzle começa a encaixar-se mas sabemos que poderão existir imprevistos que possam comprometer o que os leitores imaginam que possa vir a acontecer... o óbvio seria óbvio demais.
    Parabéns Jerónimo, adorei!

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  2. Gostei muito desta parte da história,e cá espero por mais um bocadinho.... tento não imaginar o que aí vem, prefiro a surpresa :)
    Beijinho

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  3. PERFEITOOOOOOOOOOOOOOOO <3

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  4. Ana Paula Curto Venâncio19 de março de 2013 às 17:10

    Gostei bastante!... Uma história que se desenrola, a apetecer ler mais...

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    1. Muito obrigado Ana Paula ...
      No próximo fim de semana deve haver mais um pedaço desta história ;)
      Beijinhos

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     O vídeo que pode ver em baixo é uma curta-metragem chamado Cupidity (ou Cupido, em português).

     A história é sobre uma empregada de mesa apaixonada por um cliente, mas que ele nunca reparou nela. Ela canta no restaurante onde trabalha e todos a aplaudem... menos o cliente por quem ela está interessada.

     Até que ela percebe o real motivo do desinteresse e recebe a ajuda de um Cupido. Veja por si mesmo: clique no play e emocione-se.